Lila, Lenu e eu.

Raphael Soyer, Annunciation, 1980.

 A tetralogia napolitana agora ocupa na minha vida um lugar de destaque, e não quero dizer somente na minha vida literária. Esses livros ocuparam a minha mente em esferas tão diversas quanto as tratadas por Elena Ferrante nestes volumes. Lila e Lenu viraram parte de mim, e nem sei quantas vezes me perguntei (e ainda vou me perguntar) o que cada uma delas faria em determinada situação.  Terminei essa história com o coração partido, os olhos marejados e o peito cheio de vontade de abraçar as meninas, as bonecas, a minha mãe e as minhas amigas. 


Acho que quis abraçar todas elas, porque esses livros exalam e espremem a potência feminina. Soa como uma celebração, mas também como um lamento, do mesmo jeito que existir mulher neste mundo soa às vezes. Os leitores e os personagens não são poupados do sofrimento, da violência diária e esmagadora, do machismo sufocante e da luta de classes que permeia tudo e todo mundo. Mas Elena Ferrante entrega absolutamente cada linha com conteúdo,  propósito e de vez em quando com poesia também.


Ao fechar o último livro percebi como tudo sempre fez sentido, como os espelhos foram bem posicionados  e como aquela experiência de leitura foi transformadora e impactante. Quando falo sobre espelhos, não falo apenas sobre Lila e Lenu, falo sobre a gente se enxergando naquelas meninas e depois naquelas mulheres, mas nos enxergando principalmente nas falhas. A identificação vem forte em diferentes aspectos, mas Elena Ferrante é tão boa, que até o incômodo em se encontrar numa característica que você reclama constantemente, é prazeroso. 


Olhar para os livros nas estantes aqui de casa virou uma experiência diferente depois destas páginas, não sei se ainda sou capaz de bater os olhos em um volume qualquer e não me lembrar do poder do acesso, do privilégio da literatura e de ter podido, desde sempre, dar a minha cabeça o terreno e os materiais necessários para caminhar sabendo que eu sempre tinha a possibilidade de aprender, olhar, descobrir. Nunca toquei um contexto onde o conhecimento me foi negado.


Quantas Lilas geniais e singulares nós perdemos todos os dias, e quantas Lenus nunca saem dos bairros, escrevem livros e veem o mundo? Ferrante me deixou mastigando essa pergunta por dias, nunca com um humor muito positivo. Essa autora me fez mergulhar em mim, profundamente. E depois me fez olhar para o mundo, mais atentamente. É tudo tão real que é impossível não ver.


Amei e odiei personagens na mesma intensidade com que minha eu adolescente nos tempos de Crepúsculo costumava fazer, quis entrar nas páginas e me meter no desenrolar dos fatos, quis gritar para as protagonistas verdades tão óbvias para mim e tão distantes para elas, a complexidade de todos estes personagens quase me engoliu. Também tive a sorte de compartilhar essa leitura com um grupo maravilhoso e pipocador de emoções e questionamentos,  me sinto na obrigação moral de acrescentar que talvez o combo 'livro incrível discutido com pessoas incríveis' deva virar algum tipo de maravilha imaterial oficial do universo, do tipo com selos.


Descubro agora que provavelmente não escrevi uma resenha, mas se você chegou até aqui  já tendo sido absorvido por Ferrante, deixo um abraço telepático online e te digo diretamente que acho que fazemos parte uma parcela muito sortuda da população mundial, os apreciadores do monumento Elena Ferrante. Mas se você chegou aqui sem ter lido, de repente pensando se vale a pena, eu te imploro que você saia correndo para sofrer e se apaixonar por umas das histórias mais incríveis que já lí na vida, e se deixe levar por um retrato dolorido, extraórdinário, detalhado e extremamente relacionável da existência humana.


Comentários

  1. Jade, você conseguiu colocar em palavras todo o sentimento da experiência profunda e avassaladora que é ler Elena Ferrante! É do tipo que eu queria desler, sabe? Mas já que não possível, me agrada muito saber que a literatura dela existe, que poderá me contagiar por muito tempo e que poderei ter outras leituras em novas fases de minha vida. E quem sabe no futuro a gente não releia junto?! Nossas discussões são sempre um plus gigantesco de reflexões inteligentes sobre pontos que nem imaginei serem possíveis. Parabéns pelo belíssimo texto! Continue <3

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